Nas horas mortas penso na vida. Insuflo-lhe ar e movimento para afastar o tédio que ronda astuto. Deixo o meu pensar perder-se vagarosamente no labirinto das emoções que se emaranham umas nas outras mais e mais e mais... Relembro o meu coração da necessidade de ser grata por poder ter tamanha emoção guardada na memória. E, mesmo sentindo uma ponta de frio que me percorre a espinha, fecho a porta dessas emoções para que jamais arrefeçam. Quero-as quentes e aconchegadas ao melhor de mim mesma. Só assim consigo manter a alma leve, tranquila, sorridente e em equilíbrio com o mundo em que vivo! Tudo em mim passa pelo coração!
Sinto as pálpebras pesadas, tardiamente, um aviso ou um lamento - o corpo está cansado, a mente exausta...
Com uma sombra de insónia a pairar sobre mim, dou os poucos passos que me levam num arrastar até ao leito que me parece gigante quando olhado da ombreira da porta secular que, com toda a certeza encerrará segredos, histórias e mistérios ao longo das gerações que passam. Deito-me, aninho-me. Em quê? Em mim mesma, só em mim... Imune ao contacto frio dos lençóis já velhos que, também eles serão contadores de histórias, aninho-me em mim mesma! Com um suspiro que exalo numa nuvem de vapor que se forma ao contacto frio do ar que se respira, estendo a mão sabendo que não mora ali um corpo; olho a almofada solitária que parece exprimir um grito mudo e... aninho-me em mim mesma, rendida ao vazio. Penso em ti, penso num abraço de corpos velhos conhecidos. Penso no quente do teu corpo que me aquece nas noites frias enchendo-me de uma magia como só tu consegues. Penso no corpo que se estende ao meu lado, aninho-me nele, qual peça perfeita de um puzzle onde o silêncio reina e tudo diz. No cheiro da tua colónia que me impregna os sentidos de um fresco e de uma primavera que já lá vai. No teu toque forte e no arrepio que me provoca. Custa-me adormecer porque não estás, porque enche-se-me a mente dos mistérios dos sentidos. A noite está densa, instalada. Cheia de sons e de vento. Aprimoro o sentido e ouço sons distintos de uma vida que ainda vibra nas ruas mas a um ritmo lento, pesado, quase choroso! Só não me chega o som da tua respiração tranquila e cadenciada de quem dorme profundamente. Só não me chega os meus sonhos junto com os teus numa dança frenética. Só não me chega o abraço dos corpos. A falta que me fazes... Nas noites que passo só, nos dias em que te não vejo, na vida que rola devagar nunca ao ritmo que queremos. Aninho-me, em mim mesma! Só! Quase tomada de uma ponta de revolta... A vida atropela-me, não sei quem corre mais… Os meus sonhos ou o tempo que se escapa indiscretamente pelos meus dedos como uma pasta pegajosa que se me entranha.
Por vezes deixo-me seduzir pela amargura, e ela vem, instala-se sem pedir licença como um lenço que me amordaça os sonhos e os prende impiedosamente. A escuridão toma conta do espaço de vida que vivo e eu moro nela por um tempo que determino atempadamente, pois necessito dele como de água para me humedecer a alma e mostrar os caminhos da dor, que, forçosamente tenho que evitar. Mostra-me desertos de emoção que não quero atravessar e recuso a negritude dos sinais de fumo que suavemente se dissipam no ar. E vem, cruel e crua encher-me os pulmões de um ar viciado que todos respiram e ao qual quero fugir. É o momento de resgatar, de devotar ao esquecimento aquilo que bule com a minha paz. A vida espera por mim lá fora só tenho que encontrar o som da primavera e deixar que em mim se derrame como um manto estrelado de sensações à flor da pele pois é assim que sempre vivo! Tentando encontrar um lugar, onde possa largar tudo ao esquecimento como se me cobrisse de um manto onde bordei cuidadosamente todas as dores e desgostos, todas as lutas diárias, todas as mazelas que, um dia, a vida resolveu oferecer-me como prémio, não sei de quê pois o sentido não o encontro por mais que o busque incessante e determinada.
Tentando encontrar um lugar seguro onde depositar estes bordados que, pacientemente vou acrescentando ao meu mapa de vida. Tentando encontrar um lugar de paz (o teu sorriso, labirinto onde me perco), onde possa esboçar o meu carregado de doçura, um gesto de magia que me envolva e deixe dormir acordada e sonhar. Os meus sonhos misturam-se em pensamento com a realidade vivida e como um feitiço colocas em mim, de novo, um sorriso leve e matreiro, o oposto do teu que é contido e me faz perguntar: O que ele contém quando para mim olhas de soslaio? Tarde da noite, o corpo cansado e a mente pejada de memórias deixo que um manto cintilante de estrelas me afague e me transforme em anjo alado.
Um manto negro que me envolve, qual mãos quentes e sedosas; me acaricia e transporta para vivências diferentes do hoje numa viagem incrível. E recordo o livro dos sonhos onde outrora escrevia aquilo que não conseguia realizar porém sempre cheia da esperança que me iluminava os caminhos. Recordo paredes pintadas com cores vivas e um olhar matreiro de criança que me dissolvia qualquer vontade de repreensão. Vejo espelhado no céu, o que me visitava todas as quartas-feiras, durante meses sem fim, munido de uma rosa vermelha e uma caixa de chocolates; adoçava-me a boca e o coração e mantinha entre nós um laço que, somente a morte poderia quebrar. Tarde da noite, noite de vigília, e o manto cintilante que me envolve não consegue aquecer-me o coração. A mente alerta e poderosa capaz de tudo imaginar. Mas não são sonhos, são experiências, são vivências que não quero esquecer. É passado que fica detido no tempo para ser visitado sempre que a alma quiser. São histórias que vou relembrando, rebobinando, e verbalizando num acrescento de vida que ficará para além de mim mesma. Tarde da noite, não consigo adormecer e, olhando para o hoje que vivo sou tão grata por tudo o que tenho. A fórmula de vida só pode passar pelo amor que sentimos, que damos e recebemos e... verbalizamos sem pudor, sem vergonha, e com o coração repleto de autenticidade. É assim que eu amo! O dia está lindo, deixo a mente voar livre pelos campos verdejantes da minha emoção onde mora a esperança e o desejo tudo movimenta.
Solto o meu grito, acreditando que o ouves. É um grito quente, tão quente quanto as memórias que carrego dentro de mim. Ilumino-me na tentativa de exteriorizar as sensações que me tomam... Toda eu sou luz e energia! Uma luz que abafa a dor e me impele a continuar esta viagem pelo ser humano que és. Não vejo os teus defeitos, porém sei que os tens... Não os quero ver! Prefiro manter os olhos abertos ao que me faz bem e trás consigo esta paz que me inunda. Sentada num banco de jardim, deixo-me aquecer por fora e sintonizo-me com o universo. Toda eu sou luz! Sinto o sol, está tão forte que seria capaz de me deixar adormecer embalada no seu calor manso. Olho as pessoas que passam e apercebo-me do quão felizarda sou por esta lucidez que me permite gozar somente este momento. Uns levam a face zangada, de mal consigo mesmo e com o mundo; outros parecem máquinas que o tempo usa, e eles, placidamente deixam-se usar; alguns dão a mão a crianças que, na sua ingenuidade seguem a vida felizes e soltos; também há os que carregam o sobrolho de tão mal que vivem. Procuro-te na multidão que passa atarefada em rodopios que me entontecem, mas tu não estás na azáfama do mundo. Moras num lugar especial e tranquilo, longe das gentes e dos olhares!! Estás dentro de mim, tomas-me toda e eu deixo-me estar nesta lassidão sossegada. Tudo o que me rodeia deixa de fazer sentido, pois passaste a fazer parte deta luz. Irradio por todos os poros, as maravilhas que desenhas em mim em traços suaves e firmes de paixão. Volto a olhar para mim A cidade, finalmente, dorme. No meio do escuro que desceu, só uns quantos faróis de carros que ainda andam na rua. Como fossem holofotes anunciam a sua presença.
Não se vê vivalma na rua, tudo dorme, tudo sossega para aguentar com energia a ferocidade do dia que ameaça lentamente nascer. A acompanhar a orla do mar fiz uma viagem tranquila ao som de música nostálgica, que me faz sempre lembrar momentos de adolescência que já se perderam. O mar, nem vê-lo; confunde-se com o breu do céu. Onde um começa o outro acaba, misturando-se, envolvendo-se no que parece um bailado ao som do marulhar fantástico e cadenciado das ondas poucas e pequenas que ainda se conseguem ver. A cidade dorme mesmo, um sono profundo e retemperador. Só se avistam uns poucos que, como eu, ainda se passeiam pelas ruas sabe-se lá porquê. E neste sono mágico, profundo e silencioso, procuro palavras. Encontro palavras. Procuro paz e... encontro-a! Não na cidade que dorme mas dentro de mim mesma. De cara redonda como uma lua
E as faces rosáceas de um anjo Veio montada nas asas de um cupido Carregada com uma força tremenda que trazia consigo Transbordava amor e ternura Na voz doce e no olhar sagaz Perdia-se nas brincadeiras de maria rapaz E fez-se mulher com rebeldia Nunca perdendo a alvura O tempo deu-lhe formas generosas E um labirinto para passear Onde por vezes se perde Sem, no entanto, uma lágrima soltar E um novo caminho volta a trilhar E, neste cair e levantar Volta sempre ao abraço de cupido Onde lhe está tudo que é mais querido E que eu estou sempre pronta a dar. Deste canto onde me encontro, meio na penumbra apesar do dia estar lindo lá fora, deixo-me levar pelo som ingénuo das crianças a brincar, felizes e contentes, saltando e pulando... Sugadoras de ternura vivem o seu tempo a um ritmo diferente do meu, tudo é urgência, tudo é imediato.
Uma bola ou uma boneca são o seu quanto baste, nos caminhos de vida que traçam sem saber, de mão dada a um adulto que os leva e faz singrar. Infância, um tempo que jamais volta, a não ser no escuro da memória que guardamos e quantas vezes se manifesta quando menos esperamos. Lembro-me da fantástica sensação de mexer na terra...Uma terra vermelha como fogo onde se passeavam uns pequenos bichinhos parecidos com joaninhas porém, cobertos de um manto que parecia veludo vermelho. E eu, agachada na terra solta deixava-me ficar tempos infinitos, munida de uma caixa de fósforos a guardar aquelas preciosidades como se fossem jóias de valor. O melhor de tudo é o que ficou plantado em mim! Fecho os olhos e volto atrás, sinto a maciez do seu veludo e deixo cair uma lágrima de saudade do tempo em que me lambuzava de inocência e via o mundo que me rodeava a uma escala mínima! Hoje, deste canto onde me encontro, e ao ouvir aquelas crianças lá fora pareço ouvir a minha própria voz de há mais de quarenta anos atrás! Que bom que é ter memórias destas.... O corpo pede por descanso, a mente não permite. As palavras correm desenfreadas; os pensamentos atropelam-se atravessando um caminho estranho e sem rumo certo. Vão-se atabalhoadamente colando uns aos outros, atropelando-se com uma pressa que se assemelha a um medo. O corpo pede descanso mas, a mente, parece um salão de baile onde o burburinho das vozes se mistura com a música que toca e o som arrastado dos saltos que deslizam descrevendo autênticas espirais invisíveis aos olhos. As pálpebras pesam, mas não o suficiente para se deixarem levar pelo sono que espreita malévolo e não se instala. Desisto e levanto-me, de nada serve continuar uma luta desigual. Enquanto espero a serenidade de uma noite de sono retemperadora, dou trabalho aos dedos e escrevo, escrevo, escrevo com a esperança de me cansar e perder a inquietude que me assola e não me deixa dormir. Desisto, baixo os braços e largo tudo - aparecem-me palavras inusitadas, francamente boas, algumas já nem me lembrava delas, encadeio umas nas outras e vai fluindo um diálogo comigo mesma. Aparecem-me memórias, recordações, momentos vividos que me alimentam o interior e me fazem seguir em frente. Aparecem-me gentes, algumas que amo profundamente, outras nem tanto - percebo que de todas um pouco ficou em mim... Como numa entrega fantástica deixo que as sensações e as emoções e as palavras saiam de mim recheadas de calma e paz. Levantei-me sim, baixei os braços é verdade, mas, mesmo que o sono não venha valeu a pena pelo que descubro dentro de mim quando menos espero. É fabuloso viver, descobrir, sentir e... escrever!
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Telma Correia FariaBrincar com as palavras, atá-las umas às outras e deixar o coração falar! Arquivo
February 2015
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